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O duelo entre Razão e Percepção como fundamento da compreensão da prática psicológica clínica

Veja a imagem abaixo e tente responder: quantos pontos pretos existem na figura?

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Figura da grade cintilante de Bergen (1985)

Rapidamente, nossa percepção diz que é impossível dizer quantos pontos pretos a figura traz. Assim que a olhamos, parece haver vários. Tão logo olhamos para um deles, porém, o ponto automaticamente se torna branco.

Por outro lado, se analisarmos a figura racionalmente, cientificamente, seremos capazes de explicar que: em primeiro lugar, esta é uma imagem estática, ou seja, os pontos não mudam de cor; em segundo lugar, nossa percepção de pontos pretos não passa de uma ilusão provocada pela forma peculiar como nosso cérebro tende a completar os pontos brancos situados na visão periférica com a cor que os circunda, fazendo com que pareçam pretos.

Desse ponto de vista (racional, científico), não há ponto preto. A percepção de que eles existem é apenas uma fantasia, uma miragem. Não é, portanto, REAL.

Tal explicação deve nos parecer natural, já que, desde nosso nascimento, somos banhados por uma compreensão de mundo que elege o racional e o científico como O REAL por excelência, e passamos anos por um processo escolar de transmissão de conteúdos racionais e científicos que, tais como esse, desmistificam o mundo das aparências e colocam em seu lugar, com status de realidade, um mundo explicado pela razão.

Uma das grandes contribuições do filósofo alemão Martin Heidegger (1889-1976) foi apontar que não há nada de natural nessa substituição da percepção pela razão. Ao contrário, essa característica da sociedade ocidental moderna foi construída ao longo da história do pensamento humano. Não é, portanto, natural, mas foi naturalizada (adquiriu o aspecto de algo natural).

Heidegger era crítico ferrenho das ciências (produto mais ilustre do processo de racionalização do real), não porque duvidasse do que diziam, mas pela forma como se tornaram autoritárias, únicas e absolutas como interpretação válida sobre o mundo.

Para o filósofo, a história que consagrou a versão racional como única verdadeira se inicia há milênios, na Antiguidade Clássica, mais especificamente na Grécia, cerca de 2.500 anos atrás.

Nessa época, pensadores ainda hoje bastante conhecidos, como Sócrates, Platão e Aristóteles, lançaram as bases dessa visão de mundo, estabelecendo que o Ser das coisas (aquilo que elas são) está no conceito (grosso modo, a ideia que reúne todas as variantes manifestações das coisas [aparências] numa única Verdade imutável e atemporal), e que este pode ser alcançado exclusivamente por meio da razão (intelecto, cogito).

Tal compreensão é explicitada de modo bastante claro numa metáfora de Platão, o Mito da Caverna.

Para o pensador grego, a condição humana é similar à de prisioneiros em uma caverna. Essas pessoas nasceram ali e estão, desde sempre e para sempre, presas pelas pernas, braços e pescoço, a olhar fixamente para o fundo dessa caverna. Do lado de fora, uma fonte de luz muito intensa ilumina esse fundo, projetando nele sombras das coisas que passam entre a fonte de luz e a entrada da caverna.

Assim, expõe Platão, aquilo que percebemos (o aparecer das coisas) que nos parece tão real (porque desde que nascemos é a única realidade que conhecemos), de fato não passa de cópia (sombras) das coisas verdadeiras (conceitos).

Essa Verdade conceitual, ainda segundo ele, só pode ser acessada por meio da razão (Filosofia). No Mito, Platão metaforiza essa “libertação” do mundo das aparências representando um prisioneiro que consegue se libertar das amarras e sai da caverna, só então percebendo que tudo o que havia vivenciado até então era ilusão.

De Platão até hoje, a Filosofia se desenvolveu enormemente, mas nunca abandonou essa premissa: a de que a razão seja o instrumento revelador da verdade das coisas.

O pensamento de Heidegger denuncia esse acordo tácito, apontando que a razão é uma via de acesso ao mundo, mas não a única, nem necessariamente a melhor ou mais “verdadeira”.

Essa compreensão tem consequências bastante importantes para a Psicologia, em específico para a prática psicológica clínica. Vamos continuar essa conversa no próximo post…

 

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