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A culpa não é sua

Embora vivamos num mundo que valoriza a racionalidade, nossa dimensão afetiva talvez responda pela maior parte das decisões que tomamos cotidianamente.

Alguns sentimentos, como o medo e a raiva, têm como resultado nos levar à ação (fugir do perigo, atacar). São conquistas evolutivas que permitiram a nossos ancestrais uma melhor adaptação ao ambiente hostil em que viviam. Em princípio, são algo positivo, exceto nos casos em que se tornam crônicos, ou seja, quando surgem independentemente da presença dos estímulos que deveriam eliciá-los (e perdem, portanto, seu sentido adaptativo). index-315754_640

Entre esses sentimentos há, porém, um que desperta interesse especial para quem atua na prática psicológica clínica: trata-se da culpa.

A culpa tem uma função restrita ao âmbito cultural, e origem mais recente que outros sentimentos.

A questão que se coloca em relação a ela é simples: para que serve a culpa? Ou, já que esse sentimento parece ser uma construção social, talvez a pergunta seja melhor colocada de outra forma: a QUEM serve a culpa?

Vamos pensar na seguinte situação:

Uma criança de 4 anos começa a bater nos colegas de escola. Os pais e a professora têm que vigiar seu comportamento o tempo todo, para que as agressões não ocorram.

Além das broncas, os adultos a sua volta dizem à criança que bater é feio, coisa de menino(a) mal-educado(a), e insinuam que, se ela continuar sendo assim, poderá perder o afeto de pessoas importantes.

Depois de algum tempo, percebe-se que a criança não precisa ser mais vigiada. O comportamento cessou completamente.

O que aconteceu?

Ela internalizou as advertências que recebeu de modo tão pleno que o simples desejo de bater em outra criança lhe causa uma sensação desagradável, de erro, de inadequação. Em outras palavras, a manifestação de sua agressividade agora a faz sentir-se culpada.

De fato, podemos compreender que o sentimento de culpa é uma forma de controle sobre o comportamento e sobre os desejos de alguém.

Enquanto um desejo culturalmente indesejado reina desenfreado, a punição é a única forma de combate-lo. Se, contudo, a sociedade consegue fazer com que o sujeito se aproprie da norma, a vigilância e a punição se tornam menos importantes, pois ele mesmo se encarrega de controlar a realização do seu desejo, para evitar a sensação ruim que dela advém.

É possível dizer que esse “mecanismo de funcionamento” da culpa tem uma importante função social, ao impor aos sujeitos a renúncia de desejos egoístas em nome do convívio.

Ocorre que a renúncia deflagrada pelo sentimento de culpa é obviamente heterônoma, isto é, não é fruto de uma decisão consciente do sujeito, mas de um conjunto de normas externas internalizadas de forma irrefletida. É algo que escapa à autonomia e à liberdade.

Além disso, também podemos refletir que, por conta da formação familiar e/ou da maneira como interpretam certas normas sociais (religiosas, morais etc.), alguns sujeitos têm seu processo de “subjetivação” (de tornar-se aquilo que ele/ela almeja, realizar seu projeto de vida) seriamente comprometido por um sentimento de culpa exagerado.

Nesses casos, ocorre que os sujeitos internalizam normas nas quais não veem sentido, cuja utilidade não compreendem ou com a qual não concordam.

Por exemplo, alguém criado numa família extremamente conservadora e rígida no que diz respeito ao sexo pode sentir-se culpado durante toda a vida por ter desejos sexuais que – acredita – seriam passíveis de condenação, segundo os cânones familiares. Mesmo que esse sujeito, quando adulto, esteja distante dessa tradição familiar de origem (do ponto de vista do espaço, do tempo e de suas atuais convicções de vida) ele poderá experimentar uma associação entre prazer sexual e sentimento de culpa.

Em consequência, o sujeito enfrentará constantemente um conflito no qual nenhuma escolha resulta em um “final feliz”: ou ele realiza seu desejo sexual, e se sente culpado, ou não realiza, e se sente frustrado. De qualquer forma, ele nunca está bem…

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Cada um de nós pode fazer um breve exame de consciência e buscar refletir sobre a existência de situações como essa. Quantas culpas carregamos sem querer? Quantas regras nos aprisionam sem que tenhamos consciência? Quantas normas, com as quais não concordamos, nos paralisam e impedem uma vida mais plena e realizada?

Agradeço a Nivea e a Regina, interlocutoras que tornaram possíveis essas reflexões!

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