Procusto é uma figura mitológica controversa e cruel da antiga Grécia.
Algumas fontes dizem que era um bandido (assaltante, assassino), outras, que trabalhava numa estalagem.
Em comum, todas apontam para uma característica atroz: primeiro, Procusto fazia os viajantes deitarem numa cama. No meio da noite, aproveitava para imobilizá-los e os obrigava a ocupar o exato tamanho do leito oferecido. Se o hóspede era maior, Procusto lhe cortava as pernas e/ou a cabeça; se era menor, lhe esticava até quebrar os ossos.

Nenhuma de suas vítimas cabia perfeitamente na cama que recebia (muitos afirmam que Procusto tinha, secretamente, duas camas, de modo que sempre era possível oferecer uma em que faltasse ou sobrasse espaço).
O mito de Procusto nos permite expressar alguns simbolismos interessantes para nossa vida e, em especial, para a prática psicológica clínica.
Para tanto, em primeiro lugar, é preciso compreender que o modo como estudamos na escola o ser do humano (como “animal racional”) está incompleto (é uma herança aristotélica, a propósito).
Na mesma direção que aponta o pensador contemporâneo Edgar Morin, além de sapiens (capaz de saber e ordenar o mundo intelectual ou racionalmente), o humano é também, e ao mesmo tempo, demens (emocional, impulsivo, caótico). E é em ambas essas dimensões que o sujeito pode revelar tendências daquilo que alguns psicólogos têm chamado de Síndrome de Procusto.
Do ponto de vista racional, uma visão como a de Procusto leva à imposição de padrões de conduta e pensamento; é a injunção de ideologias, opiniões, crenças e convicções a respeito de qualquer assunto ligado à cultura ou à natureza. É a intolerância ao outro enquanto singularidade, a determinação de que se estabeleça uma “certeza comum”, baseada em categorias previamente submetidas aos cânones de uma razão de caráter universalizante.
Ora, o que acabo de explicitar descreve com grande semelhança o uso da técnica na modernidade. Compreendemos a técnica como uma fórmula, um conjunto de métodos que, levados a cabo, resultam no objetivo esperado. Logo, quem domina “técnicas de redação”, escreve boas redações; quem possui “técnicas de defesa pessoal” é capaz de se livrar de agressões, e assim por diante.
Ocorre que, assim compreendidas, as técnicas nada mais são do que “certezas comuns”, que se impõem obrigatórias em determinadas situações. São camas de Procusto, que exigem que os fenômenos a elas se adaptem, nunca o contrário.
Na prática psicológica clínica, enfrentamos constantemente esse risco, de tentar encaixar os clientes/pacientes nas compreensões e técnicas que dispomos, reduzindo-os a conceitos “universais” (como Complexo de Édipo) e aplicando-lhes instrumentos niveladores (como anamnese, testes psicológicos, associação livre, “cadeira vazia” etc.).
De modo complementar, em nossa porção demens, Procusto age firmemente.
Se, num ambiente com algumas pessoas, uma delas começa a chorar, as outras simpaticamente lhe dirigem um olhar enternecido e dizem: “não chore”, “não fique assim”. Se uma criança gargalha ruidosamente, algum adulto próximo pode dizer-lhe: “não exagere, você está gritando”. Podemos, ainda, perceber como vindo de fora (de um “outro”) alguma emoção que nos é própria – sinto raiva, e acho que o outro está nervoso; sinto medo, e acho que o outro é medroso etc.
O mito de Procusto nos alerta: por vezes, é mais fácil (no sentido de confortável) entender o mundo como uma uniformidade que se estende a partir de mim. Como uma planície sem grandes variáveis, ou como um mar calmo. Sempre que assim o fizermos, estaremos reduzindo a realidade, impondo uma compreensão de caráter universal a situações singulares.
A compreensão do mundo enquanto fenômeno múltiplo e complexo depende de nossa disposição (abertura) à diversidade. E nem sempre estamos dispostos a lidar com a diversidade, pois isso implica estar aberto ao desconhecido…
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