(Todas as análises aqui expostas são exercícios de compreensão feitos a partir de uma obra de ficção, sem qualquer pretensão de representar diagnósticos que possam ser utilizados em situações reais)
Este foi um daqueles filmes que me interessaram bem antes do lançamento.
Não sou especialmente fã de filmes de super-heróis.
Martin Scorsese disse, recentemente, que não acha que esse tipo de filme seja cinema, uma vez que lhes falta a narrativa de experiências emocionais e psicológicas verdadeiramente humanas.
Eu, que não tenho nem sombra do conhecimento cinematográfico do diretor, ouso desconfiar dessa opinião.
Tendo a concordar com Robert Downey Jr., intérprete do Homem de Ferro, quando diz que as salas de exibição devem comportar todas as diversas formas de manifestação.
Mas, na minha experiência, filmes de super-herói são basicamente entretenimento. Duram em mim o tempo da exibição. Nossa relação termina quando sobem os créditos.
Desde os primeiros comentários e vinhetas publicitárias sobre o ‘Coringa’, pareceu-me que se tratava de algo diferente. Exaltava-se justamente a densidade dos aspectos psicológicos da personagem.
Confesso que minha curiosidade também foi atraída pela polêmica, que rondou as primeiras exibições, de que o filme supostamente incitaria a violência.
Assisti ao filme no último final de semana.
(Nota sobre o Oscar: Joaquin Phoenix merece 2 estatuetas; uma pela atuação, e outra, caso perca a primeira)
(Nota sobre spoilers: meu ponto de vista sobre spoilers de obras como o ‘Coringa’ é de que não necessariamente “estragam” o filme. Ao contrário, alguns podem enriquecer a experiência, preparando a atenção do espectador a elementos que, de outra forma, talvez passassem despercebidos.
Mas – sim – a partir deste ponto, há fatos que revelam partes do filme)
A RISADA
Uma das características marcantes do Coringa é sua risada, quase sempre sem contexto e exagerada.
Talvez você já tenha lido em algum lugar que este é um sintoma do “afeto pseudobulbar” ou “transtorno de expressão emocional involuntária”, uma condição neurológica que pode ter sido causada pelos maus tratos a que Arthur Fleck foi submetido na infância.
Depois que Arthur rouba o prontuário da mãe no Hospital Arkham, descobrimos que, quando Penny foi detida, o menino foi encontrado amarrado, com escoriações pelo corpo todo, e um trauma severo na cabeça.
O afeto pseudobulbar é uma condição neurológica que pode ter diversos outros sintomas, além da risada extravagante. Pode ter manifestações físicas, como, por exemplo, problemas de fala, deglutição, dificuldade nos movimentos voluntários da língua etc., e psicológicas, como labilidade emocional (pronunciada inconstância de humor). No filme, esses outros sintomas não me parecem presentes de maneira perceptível (exceto talvez quando uma grande quantidade de secreção sai involuntariamente de sua boca durante uma gargalhada).
Outra possível explicação para a enigmática risada é a de que o personagem de Joaquin Phoenix seja afetado por uma “epilepsia gelástica”, doença frequentemente causada por tumores numa região do cérebro chamada hipotálamo.
De qualquer forma, chama a atenção o número de pessoas que buscaram, desde o lançamento do ‘Coringa’, explicar algo que o próprio filme não faz questão de explicar.
O sentido dessa busca pode estar no incômodo que a tal risada provoca. É comum buscarmos explicação para o que mais nos incomoda no ‘outro’, como forma de desviar o foco de nossos fantasmas internos, aonde esses incômodos fatalmente vêm ecoar.
UM HOMEM À SUA PRÓPRIA SORTE
A dúvida do espectador quanto a esse diagnóstico reflete algo importante na vida de Arthur: o cuidado com sua saúde é precário, desde a infância, seja como autocuidado, seja como cuidado vindo da mãe ou do Estado (como veremos em seguida).
A consulta periódica com a assistente social é burocrática, repetitiva e sem empatia. Parece meramente um protocolo necessário para que ele retire seus medicamentos. Quando o serviço público é desativado, ele não recebe sequer uma indicação de como prosseguir seu tratamento.
Em poucos minutos de filme, Arthur é desrespeitado por seu chefe, agredido violentamente por adolescentes e desprezado ao tentar brincar com uma criança no trem.
Arthur é um ser humilhado, motivo de escárnio para a sociedade, sem nada, nem ninguém, que venha em seu socorro. Arthur é a escória.
ARTHUR É UM SIMULACRO QUÍMICO
Neste ponto, se insere outra questão pertinente. Além de uma (misteriosa) patologia orgânica, que explicaria sua incômoda risada, é muito difícil dizer qualquer coisa mais específica sobre a psicologia de Arthur Fleck.
Essa afirmação pode parecer estranha a respeito de um filme que já rendeu tantas e diversas interpretações, justamente no que concerne à psicologia da personagem. Mas, vejamos…
Segundo a assistente social, Arthur faz uso, à época dos acontecimentos retratados no filme, de sete medicamentos diferentes… Sim, não um ou dois, mas SETE medicamentos.
(A forma como essa informação é “jogada” ao espectador me pareceu desnecessária, e é minha principal crítica ao filme).
Não sabemos que remédios são esses. Porém, o filme não aborda patologias físicas que justificassem remédios de uso contínuo, como hipertensão, diabetes e outras. Assim, me parece bastante razoável imaginar que todos, ou pelo menos a grande maioria, sejam psicotrópicos, ou seja, medicamentos psiquiátricos.
Drogas psiquiátricas podem ter interações com inúmeras substâncias orgânicas, que controlam diversos mecanismos cerebrais, o que potencialmente resulta em uma profunda influência sobre os sentimentos, pensamentos e comportamentos das pessoas.
Em outras palavras, drogas psiquiátricas podem afetar, diretamente (principalmente para um observador externo provisório, como é nossa função enquanto espectadores), aquilo que a pessoa é.
O que dizer, então, de alguém que toma SETE tipos diferentes de medicação?
De que modo os sentimentos, pensamentos e comportamentos de Arthur Fleck são alterados, maximizados, minimizados etc. pelos muitos remédios que toma?
Impossível dizer, pois já o conhecemos assim, fortemente medicado.
Como era Arthur antes da medicação? O que o levou a procurar ajuda (ou teria ele sido levado)? Quais foram os remédios prescritos, e por qual motivo?
Simplesmente, não sabemos.
Por exemplo, a maneira como Arthur reage quando submetido à violenta situação de bullying, logo no início do filme, reflete um modo de ser (uma postura existencial) ou um embotamento afetivo provocado pela medicação?
Repito: acho impossível saber.
Eis que, então, cerca de 40 minutos depois de iniciado o filme, Arthur deixa de tomar os medicamentos (como dito acima, a prefeitura de Gotham descontinua o serviço).
A retirada abrupta de remédios psiquiátricos de uso contínuo costuma ter grandes efeitos. E, muitas vezes, desastrosos.
Mais uma vez, temos um Arthur Fleck possivelmente refém de sua bioquímica psíquica, e, de novo, não conseguimos discernir o que é dele (existencialmente falando), e o que é sintoma, agora da abstinência.
Este é o motivo da minha crítica. A citação aos tais SETE medicamentos me pareceu desnecessária. Mas, uma vez que ela é feita, altera toda possível compreensão do estado psicológico da personagem-título.
Mal comparando, é como ser apresentado a alguém que está embriagado. Muitas de suas características estão alteradas pelo álcool: sua fala, seus reflexos, sua coordenação motora, sua agilidade de raciocínio etc. Se não tivermos oportunidade de encontrar a mesma pessoa antes ou depois da bebedeira, poderemos de fato dizer que a conhecemos?
Se Arthur toma sete medicamentos psiquiátricos, e abruptamente interrompe seu uso, tudo que vemos no filme entra em suspeição.
Estaríamos nós realizando análises psicológicas sobre um mero SIMULACRO QUÍMICO?
E SE DESCONSIDERARMOS A AÇÃO DOS MEDICAMENTOS?
Os comentários acima me parecem pertinentes à investigação sobre “quem é Arthur Fleck”.
A condição que se alterna, de usuário intenso de medicamentos psiquiátricos, a usuário em abstinência (interrupção abrupta), pode fazer enormes estragos.
Coincidentemente ou não, a sintomatologia da personagem Arthur Fleck não permite uma única classificação segura e definitiva no rol das condições psicopatológicas conhecidas.
O que farei é levantar questões e hipóteses que esboçam compreensões possíveis, além de tratar outros aspectos “não-patológicos”, mas relevantes, como a dúvida sobre a paternidade de Arthur.
ARTHUR TEM RETARDO MENTAL?
Arthur parece ter dificuldade em compreender certos códigos do mundo adulto, como sentimentos complexos. É ingênuo, tem pouca habilidade interpessoal e comunicacional.
Não consegue enxergar a maldade de certas atitudes, nem percebe que suas atitudes podem ser interpretadas como maldade (o que acontece quando tenta brincar com a criança no trem).
Tamanha puerilidade, quando consideradas as condições de vida que enfrentou na primeira infância (abusos, agressões, possíveis doenças não tratadas) poderia levantar a hipótese de deficiência cognitiva.
Se nosso olhar se ampliar para além do filme, porém, a figura do Coringa talvez não seja compatível com a de alguém com rebaixamento intelectual.
ARTHUR É DEPRESSIVO?
Ele também chora (em meio ao riso nervoso), se mostra apático a situações com alta carga tensional, possui certa anedonia (incapacidade de sentir prazer).
Arthur parece alguém bastante insatisfeito com sua própria vida. Em mais de um momento, o filme sugere que ele deseja cometer suicídio.
Isso nos remete aos matizes psicológicos da depressão.
As roupas de Arthur, antes de sua ruptura final, são de cores apagadas e aparência “encardida”. Os ambientes que ele frequenta, são igualmente mal iluminados, sem vida, sem cor.
A própria colorimetria do filme nos convida a um olhar depressivo em relação a Arthur.
ARTHUR É PSICOPATA?
O conhecido comportamento violento e antissocial da personagem, explicitado na metade final do filme, costuma ser visto como indício de psicopatia.
É uma possibilidade legítima, mas vejo “problemas”.
Em alguns momentos, Arthur demonstra afetos autênticos em relação ao ‘outro’, característica incomum a esta patologia.
Psicopatas também costumam ter sua agressividade manifesta por meio de comportamentos mais manipuladores e bem organizados, o que não se vê no filme (embora, em outras obras, apareça na história da personagem).
Além disso, Arthur é alguém que sofre, de modo aparentemente profundo e genuíno.
ARTHUR É PSICÓTICO?
Penny sempre disse que o filho nasceu para levar alegria ao mundo e fazer as pessoas sorrirem. Ao mesmo tempo, porém, ela o critica e duvida de sua competência como comediante.
Tal situação implica o que podemos chamar de “duplo vínculo”.
O duplo vínculo se compõe a partir da comunicação de mensagens ambivalentes, de modo verbal ou não-verbal.
É dizer algo e seu oposto. É mostrar algo e negá-lo, ao mesmo tempo.
Um exemplo simplório (frise-se, simplório!) seria um pai dizer a seu filho pequeno: “Venha cá, meu bagunceiro lindo!”. Se a criança sabe que bagunça é algo ruim, e beleza é algo bom, “bagunceiro lindo” é uma mensagem ambivalente.
Mães, pais e cuidadores que tendem a incentivar o duplo vínculo costumam fazê-lo desde o começo da vida de suas crianças. A situação de duplo vínculo confunde, desorienta, dificulta a percepção de ser amado e o desenvolvimento da autoestima.
Há autores que sugerem que a introjeção do duplo vínculo pode predispor algumas crianças a uma dissociação do ‘eu’, própria da psicose.
Um sintoma de dissociação, presente nas psicoses, são as alucinações e os delírios.
Quando Arthur se vê mantendo uma relação mais próxima com a vizinha (e depois se revela ao espectador que a vizinha nunca esteve ao seu lado), estaria Fleck delirando, ou apenas imaginando?
QUEM É O PAI DE ARTHUR?
Arthur se encarrega de cuidar da mãe, numa parceria que só é interrompida quando começa o programa do Murray Franklin (uma figura paterna idealizada – um comediante de sucesso, como Arthur gostaria de ser).
Ele desconhece a identidade de seu pai, até que resolve ler as cartas que a mãe insistentemente escreve ao magnata Thomas Wayne (na casa de quem Penny teria trabalhado) e percebe que, nelas, a mulher se refere a Arthur como ‘nosso’ filho.
Se for verdadeira, essa informação tem uma implicação importante: Arthur Fleck é irmão mais velho de Bruce Wayne, ou seja, Batman e Coringa são irmãos.
Conforme o filme se desenrola, porém, Arthur é confrontado com outra versão. Depoimentos e documentos desmentem a versão da mãe, internada 30 anos antes no Hospital Arkham, e diagnosticada com psicose delirante. Arthur teria sido, na verdade, adotado.
A nós, espectadores, resta a dúvida.
Numa Gotham desigual e corrupta, não seria difícil ao bilionário Thomas Wayne fugir da responsabilidade (e do possível escândalo de um caso extraconjugal), forjando documentos e, até quem sabe, forçando uma internação psiquiátrica (nada melhor para desacreditar alguém do que chamá-la de louca).
PONTO DE RUPTURA
Arthur Fleck (ainda) não é o Coringa.
O filme mostra exatamente essa transformação de Arthur, rapaz curvado, constrangido, frágil, dependente de medicamentos, no Coringa, ereto, confiante, poderoso e independente.
Logo após realizar seus primeiros assassinatos, Arthur entra no banheiro, se olha no espelho e abre os braços. E dança.
Parece livre, afinal. Rompe as amarras simbólicas da miséria de vida que leva.
A passagem que transforma Arthur no Coringa é um empoderar-se existencial, via violência.
Conforme dito em entrevista pelo diretor do filme, Todd Phillips, a única risada verdadeira de Arthur (que não é apenas reflexo de sua ‘doença’) é a última.
Já preso no Arkham, ele gargalha. A pessoa a sua frente pergunta “qual é a graça?”.
Pela primeira vez, ele não responde “eu tenho uma doença”, mas “eu me lembrei de uma piada”, enquanto imagina Bruce Wayne sozinho, com os pais assassinados caídos ao chão.
Este talvez seja o motivo da polêmica a que me referi no início do artigo.
O Coringa surge numa sociedade que relega muitos de seus habitantes à miséria e à falta de cuidado, e que lhes oferece apenas escárnio e violência (física e simbólica).
E assim também é a nossa sociedade.
O medo, em si bastante compreensível, é de que outros Arthur’s, José’s, Maria´s, Dirce´s, João’s, possam também encontrar no comportamento antissocial e na violência sua maneira de “ser alguém”.
Na Gotham do filme, a notícia de que um palhaço teria assassinado três yuppies provoca o início de uma série de manifestações, nas quais as pessoas vestem máscaras de palhaço. É como se aquele palhaço assassino tivesse, indiretamente, realizado o desejo de parte da população, tornando-se seu representante. Para essa população marginalizada e gestante de violência, o herói é o Coringa, não Batman.
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Um comentário em “ARTHUR FLECK (AINDA) NÃO É O CORINGA”