Um dia, eu e meus amigos saímos para brincar pela última vez, e ninguém percebeu…

Era uma turma de crianças que se reunia diariamente, ou quase. Os convites para o encontro muitas vezes nem eram necessários; quando ocorriam, não tinham qualquer formalidade: eram códigos.

Uma voz ao interfone: “Tô descendo”- e pronto.

A informação se espalhava como fogo e, em questão de minutos, uma horda se acumulava no pátio do condomínio.

Ali, passávamos dias, tardes, noites… sempre um tempo além do que nossos pais gostariam.

Brincávamos, jogávamos, conversávamos, tínhamos interações de toda sorte, nas quais aprendíamos, discutíamos e resolvíamos, ficávamos “de bem” e “de mal”, confrontávamos as semelhanças e diferenças de nossos valores familiares. Crescíamos.

Hoje, lembro como se fosse um sonho, mais de 30 anos passados.

Mas houve um dia (Uma tarde? Uma noite?). Uma vez, todo esse ritual aconteceu pela última vez.

Provavelmente, agimos normalmente o tempo todo, como era nosso costume.

Ao final, a mãe de alguém deve ter chamado para o jantar, ou o pai de alguém pediu pressa no banho, e o grupo se dissolveu.

Mas, ao contrário de todos os outros encontros, aquele não se repetiu.

Não nos despedimos. Não fizemos um balanço final de nossas experiências. Nada.

Algo que era quase tão natural quanto a própria vida, simplesmente deixou de existir, e ninguém se deu conta.

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Muitas coisas na vida são assim. Em cada relacionamento amoroso, houve um último beijo; em cada escola, um último dia de aula. Houve uma última vez em que cantei para meu filho dormir. Muita gente importante, que hoje não vejo mais, um dia eu vi pela última vez.

Tudo que fazemos com certa frequência, e termina, um dia é feito pela última vez.

E é comum que a vida nos pegue de surpresa, e a gente nunca mais pense nisso.

Quando nos pegamos em meio a reflexões como essa, nossa nostalgia pode induzir-nos a pensar que não aproveitamos todos os momentos como poderíamos. Talvez fiquemos ressentidos por não ter dado atenção a detalhes que anunciavam o fim, talvez duvidemos se nos entregamos suficientemente a todas as possibilidades vivenciais que passaram por nós.

Mas não é isso que me chama a atenção nesse momento.

Esse nosso modo – digamos – um tanto efêmero de nos relacionarmos com certas situações fundamentais de épocas específicas de nossas vidas, que depois nos deixam sem rastro identificável, pode ser próprio à maneira como lidamos com o tempo.

Se meditarmos um pouco sobre nosso jeito de viver, veremos que, de fato, as coisas primeiro acontecem, se apresentam, fazemos escolhas quanto a ficar ou não nelas, nos envolvemos, curtimos, desenvolvemos laços etc., e só depois de algum tempo nos sentimos à vontade para “pensar a respeito” delas.

O devir é mesmo como uma astronave que, “Sem pedir licença, muda a nossa vida, e depois convida a rir ou chorar…” (como diz a música Aquarela, de Toquinho).

Esse “pensar a respeito”, durante ou depois do que é vivido, é o que permite a nossa elaboração da vivência. E à vivência elaborada podemos dar o nome de experiência.

Vivências são dados perceptivos e de memória acumulados. Não são ainda narrativas, e, portanto, não têm validade como ensinamento de vida.

Com a elaboração reflexiva, que transforma a vivência em experiência, aquilo que foi vivido (afetos, lugares, sensações, gostos, cheiros…) se agrupa em unidades de sentido. Essas unidades, sim, já têm mais um “jeitão” de histórias de vida (narrativas, no sentindo de Walter Benjamim): são aprendizados e ensinamentos, que transformam o sujeito que as viveu e podem transformar outros sujeitos, por meio de sua comunicação.

Não por acaso, essas histórias de vida estavam presentes em comunicações de um passado já distante, quando pessoas de diferentes idades se reuniam com interesse e disposição para conversar (uma conversa genuína, baseada na singularidade das narrativas das histórias de vida, e não no mero blá-blá-blá que conta o que todos já sabem, ou que não fará diferença se souberem). Esse compartilhamento de histórias de vida, cheias de significado e sentido, se assemelha a algo que o filósofo francês Merleau-Ponty chamava de fala falante, um discurso denso e inédito, que vem ao mundo quando é proferido pela primeira vez.

Hoje, em nossas rodas de conversa, costumamos trocar meras informações. “Você viu quem casou?”, “O que achou do jogo de ontem?”, “Será que amanhã chove?”. É o que Merleau-Ponty chamava de fala falada, um discurso sem ineditismo, raso e repetitivo.

Para compreender melhor como podemos enfrentar o horizonte do tempo, me parece que temos que admitir e acolher o caráter “acontecimental” da vida. O ineditismo como algo inerente a cada momento.

A vida não prevê momentos de se viver e momentos de se refletir sobre ela. Nós é que temos que criar esses momentos, caso queiramos uma vida densa, com histórias cheias de significados e sentidos.

Por um lado, isso pode ser assustador, pois implica enfrentar a incerteza e a imponderabilidade, “fantasmas” que, cotidianamente, costumamos substituir por seus falsos, as noções de “planejamento” e “processo”. Mas, também, pode ser vivificante, na medida em que relativiza a suposta inflexibilidade da vida (as coisas são assim, e pronto), que tantas vezes culpamos por nossos problemas.

Enfim, penso que é uma escolha que devemos fazer.

Caso contrário, o que contaremos a nossos filhos e netos quando, numa noite de apagão elétrico, decidirem finalmente nos escutar, falando sobre a vida que vivemos?

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Prof Rodrigo Giannangelo
CRP 06/56201-2

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