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Por que tanta gente quer nos ensinar a felicidade?

FELICIDADE E SEUS CAMINHOS

A felicidade poderia ser fácil.

Em redes sociais, sigo páginas de profissionais da saúde mental, e acompanho suas dicas, que costumam começar por verbos no imperativo: seja, faça, tome, reflita, coma, pare, sinta, afaste-se, tenha…

Se seguir essas instruções bastasse, seria ótimo. Mas – vou além – segui-las não é sequer possível, porque algumas se excluem mutuamente.

Por exemplo, um post diz: “Afaste-se de pessoas negativas”. Começo a fazer uma lista. Em seguida, porém, leio: “Pratique a empatia”. Jogo a lista fora, me sentindo um tanto egoísta.

Então, uma nova mensagem adverte que: “O ano não vai ser novo se você for o mesmo”. Encho-me de coragem para mudar. Mas eis que surge: “Não queira se adequar, confie em quem você é”. Paro no meio do caminho.

E vem: “Não desista!”, mas depois: “Se não deu certo, desista!”.

Ou: “Trabalhe enquanto eles dormem”, seguido de: “Relaxe mais”.

Seria interessante entrar num acordo sobre essa tal felicidade… Afinal, é para trabalhar de madrugada ou dormir melhor? Devo mudar ou permanecer? Desistir ou insistir?

A confusão só piora quando esses ensinamentos vêm em frases de figuras célebres, porque Paulo Coelho é citado como Freud, Winston Churchill como Einstein e Tiririca como Oscar Wilde. Mas, enfim.

Como profissional da saúde mental, não vou me eximir de também dar meu pitaco.

Faça o seguinte: o que der, você faz. De resto, torça para que nenhum tsunami venha destruir o frágil castelinho de cartas que você chama de vida.

Porque viver não é só uma questão de decisão. Nem tudo depende de fazer acontecer.

Quem dera.

Essa ideia de um sujeito que faz a si mesmo (o self made man, produto da utopia do american way of life) é uma ilusão.

Dizer isso pode surpreender, porque a crença nessa ilusão está enraizada profundamente.

Além disso, quando não é o sujeito que constrói seu próprio sucesso, a sociedade atribui a entidades inefáveis (Deus, o Universo) a responsabilidade por garantir que o processo de dê com justeza. Ou seja, se você fizer a sua parte, Deus ou o Universo serão avalistas para sua felicidade.

Porém, Deus ou o Universo não premiam qualquer intenção. Há que se desejar algo “bom”. Assim, as escolhas do sujeito, em princípio neutras em termos de “certas” ou “erradas”, passam a ter uma conotação moral.

felicidade

Não consigo me adaptar a essa versão da realidade.

Atrai-me mais o trabalho da deusa romana Fortuna, que distribuía aos humanos seus bens e situações de vida aleatoriamente, sem compromisso de merecimento.

(E estamos em meio a uma pandemia que, nesse sentido, talvez nos seja pedagógica e exemplar).

Mas reconhecer tamanho poder do acaso na definição da vida assusta. Parece que precisamos difundir a ideia de que vivemos uma meritocracia, para que nos mantenhamos voluntariamente dentro de parâmetros de certo e errado. Assim se controlam pessoas.

O fato é que, se analisássemos a vida das pessoas, tentando estabelecer laços de causalidade entre o bem ou mal que praticaram e seu sucesso ou insucesso, provavelmente teríamos dificuldade.

Há grandes canalhas que são pessoas realizadas, riquíssimas, alegres, têm filhos exemplares, dormem bem e transam muito. Há boas almas que levam uma vida de injustiça e desolação. E existem os contrários também.

Um bom caminho talvez seja perceber que não há uma vida certa, que não há receita ou fórmula, que o mesmo comportamento pode ter consequências sensacionais ou trágicas, dependendo da pessoa e das circunstâncias. Enfim, que a natureza da vida é de uma complexidade que o imperativo dos verbos nunca conseguiria captar. É multifatorial, sim, mas, antes de tudo, é incerteza e imponderabilidade.

E talvez também seja importante que nós, profissionais da saúde mental, possamos relativizar a importância desses “mandamentos”, dicas e sugestões de valor supostamente universal, passando a exercitar mais a empatia, a compreensão do outro como outro, o mistério inalcançável da singularidade humana.

Pois – convenhamos – ao dizer a alguém, cuja vida fragilizou psicologicamente, “Seja forte!”, não estamos sendo apenas ignorantes, mas essencialmente cruéis.


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