Quantas vezes e em quantas situações diferentes você já ouviu a palavra “personalidade”?
– O prêmio de maior personalidade do mundo das artes esse ano vai para…
– Fulano tem personalidade forte!
– Ele é volúvel, não tem personalidade.

Não por acaso, o tradicional dicionário Caldas Aulete traz nada menos que SEIS definições diferentes para o termo!
Uma delas nos interessa aqui especialmente: “Conjunto de traços psíquicos e emocionais que formam a totalidade de uma pessoa, distinguindo-a das demais”*.
Se procurarmos em outras fontes de pesquisa, dentro e fora do “mundo psi”, encontraremos pouca variação em relação a essa definição do Aulete.
Personalidade costuma ser entendida como: 1. Modo de ser de uma pessoa; 2. Aquilo que a faz ser quem ela é; 3. Aquilo que a diferencia de outras.
Além disso, compreende-se que esse jeito de ser é uma unidade, mas é formado pela união de diversos itens / traços.
Então, por exemplo, uma pessoa é mais formal, outra, mais despojada; uma é mais introvertida, outra, extrovertida; alguém é mais racional, ao passo que outro é mais emotivo. E a composição de todos esses traços daria origem à personalidade de cada um de nós, ou seja, nos identificaria como “aquilo que somos”.
TALVEZ NÃO SEJA TÃO SIMPLES
Abordada dessa maneira, pode parecer que a personalidade é uma questão simples.
Vejamos, porém.
Como se formam os traços de personalidade?
O que faz um traço de personalidade ser mais ou menos resistente à mudança?
O que pode provocar mudanças de personalidade?
Aquilo que percebemos como sendo a nossa personalidade é o mesmo que os outros veem quando nos percebem?

ORIGEM DA PALAVRA PERSONALIDADE
Essas certamente são apenas algumas das questões que podem ser feitas para compreender melhor a questão da personalidade.
Nesse sentido, a própria origem da palavra nos ajuda a refletir.
Personalidade deriva de PERSONA, “ser humano, pessoa”, originalmente “um personagem numa peça teatral”, talvez do Etrusco PHERSU-, “máscara”**.
A referência à máscara é comum a todos os estudos etimológicos que pesquisei, e bastante significativa. A máscara era um apetrecho muito importante do teatro greco-romano (influenciado pela cultura etrusca).
A máscara exercia uma dupla função nos espetáculos: uma função visual, de permitir que a audiência enxergasse melhor a expressão facial e, portanto, o que a personagem (o mesmo caminho que constrói o termo ‘personalidade’ gera ‘personagem’) desejava comunicar; e uma função sonora, de amplificar (dar maior alcance) e alterar a voz (dar ‘vida própria’ à personagem) do ator.

A máscara MOSTRAVA, ao mesmo tempo que ESCONDIA.
Mostrava o que o ator queria que fosse percebido, no caso, as características da personagem – sua fala, sua expressão facial, seu drama. Escondia o ator ‘ele mesmo’ – seu próprio ser.
Ou seja, a máscara / persona apresentava ao público uma versão bastante modificada do ator, de modo que sua identidade ficasse oculta, e surgisse a da personagem.

Se pensarmos em ‘personalidade’ usando a máscara como metáfora, o que conseguimos?
Nossa personalidade não é o que somos!
Em vez disso, é uma espécie de apetrecho psicológico por meio do qual mostramos PARTES convenientemente escolhidas de nosso ser.
Além disso, mesmo aquilo que mostramos é filtrado e alterado desde sua origem mais autêntica.
Existe um ser que está mais “lá dentro” de nós, tão profundo que não é totalmente conhecido nem por nós mesmos.
Este ser íntimo se manifesta apenas parcial e distorcidamente por meio daquilo que falamos e fazemos, para os outros e para nós mesmos.
ENTÃO, COMO – E PARA QUÊ – SE FORMA A PERSONALIDADE?
Nosso ser íntimo não é o que chamamos de pessoa, sujeito, indivíduo. É mais uma coisa, um isso (ideia próxima ao ID freudiano).
É um oceano de desejos imperativos e afetos primários, caoticamente dispostos e indistintos entre si. Não contém limites ou contornos; portanto, desconhece regras – não as possui e não é capaz de obedecê-las. Ali, é sempre ‘agora’; não há passado ou futuro (sequer a noção de tempo faz sentido).

Logo, nosso ser íntimo não apenas está desconectado daquilo que conhecemos como “pessoa”, mas também não pertence àquilo que chamamos de realidade – esta concretude densa onde, em última análise, vivemos, as coisas têm limites espaciais e temporais e estão submetidas a regras e ordenações.
Nesse sentido, a personalidade é a entidade que nos torna pessoas, a partir de negociações entre nosso ser íntimo e o mundo (aqui, considero que “mundo” não é realidade. O mundo é o oposto ao ser íntimo; é um “lá fora” de nós, uma presença sobre a qual nada sabemos até que a experimentamos e iniciam-se as negociações. Ou seja, também o mundo passa por um processo antes de se tornar “real”).
As negociações entre o ser íntimo e o mundo vão criando a personalidade como um “eu possível”.
Cabe um esclarecimento. Quando falo em negociação, talvez esteja transmitindo a ideia de algo pacífico e ordeiro. Mas a situação não poderia estar mais distante disso.
Ser íntimo e mundo se chocam sem comedimento, com violência. É dessa guerra que emerge a personalidade, assim como os continentes emergiram dos infernais confrontos entre as placas tectônicas do globo terrestre.
Para ilustrar com um exemplo bastante simplista, podemos imaginar alguém que desde a mais tenra infância seja sistematicamente punido ao tentar expressar qualquer opinião ou gosto.
O ser íntimo quer aparecer, quer se realizar e satisfazer, mas o mundo não permite, e pune suas investidas.
Dessa negociação conflituosa pode surgir um traço de personalidade. O sujeito pode se tornar alguém extremamente quieto e introvertido, ou então mentiroso e dissimulado, como forma de se preservar das experiências negativas associadas à sua expressão autêntica.
Quanto mais o tempo passa, mais nos acostumamos a viver na superfície de nossa personalidade. Porém, o ser íntimo permanece, alternando períodos de maior e menor atividade / pressão sobre a personalidade. Como se a personalidade fosse um vulcão, que nunca perde a conexão com o magma e pode, por vezes, ser surpreendido por ele.
Embora seja comunicável, o ser íntimo não conhece idioma. Ele se faz perceber de modo absolutamente afetivo / vivencial. Ou seja, não é possível entender o que ele “diz”. O ser íntimo é da ordem do pré-reflexivo; só é possível sentir. É a partir de uma atenciosa abertura a esse sentir que podemos intuir o que nosso ser íntimo tem a nos pedir ou ensinar.

QUANDO A PERSONALIDADE TEM SEU “PREFERIDO”
A personalidade é filha do ser íntimo e do mundo, e passa a vida se espelhando neles, sem saber a quem puxou mais…
Uma personalidade fortemente identificada com o mundo provavelmente terá características mais ligadas à rigidez e à estabilidade, dará grande valor à organização e à racionalidade, ao trabalho, ao status quo social etc.
Por outro lado, uma personalidade fortemente identificada com o ser íntimo provavelmente terá características mais ligadas à fluidez e à instabilidade, valorizando o improviso, o não-planejado, o afetivo, a criatividade, a revolução etc.
REFERÊNCIAS
* Dicionário Caudas Aulete – Aulete Digital. Lexikon Editora Digital: Rio de Janeiro. https://www.aulete.com.br/personalidade (em 20/02/2021).
** Site Origem da Palavra. https://origemdapalavra.com.br/palavras/personalidade/ (em 21/02/2021).
2 comentários em “SOMOS UM ‘SER ÍNTIMO’ QUE A PERSONALIDADE MOSTRA E ESCONDE”