Em vez de tentar “curar” ou tratar o autismo, a sociedade deve aprender a aceitar, incluir e se adaptar a suas necessidades

A neurodiversidade é um conceito que surgiu no final da década de 1990, para descrever a extensa e complexa variedade do funcionamento cerebral em relação aos chamados “neurotípicos”. Nessa variedade estão incluídos o TEA (Transtorno do Espectro Autista), o TDHA (Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade), a Dislexia, a Discalculia, entre outros.
O surgimento da ideia de “neurodivergência” é um avanço em relação aos rótulos estigmatizantes de outrora, que reuniam os divergentes sob termos como “loucos” ou “doentes mentais”. Mas esse conceito ainda está longe de pacificar a questão.
Por exemplo, considere que, de acordo com um estudo da Harvard Medical School, se forem levadas em conta questões ligadas a humor, controle dos impulsos, ansiedade e outras, quase metade da população estadunidense (46%) qualifica-se como neurodivergente. Ou seja, os “não-normais” existem em mesmo número que os “normais”…
Estudos sobre o autismo calculam sua prevalência entre 1% e 2% da população – porcentagem que corresponde a um número entre 2 e 4 milhões de pessoas no Brasil.
AUTISMO E ATIVISMO NEURODIVERGENTE
O ativismo da neurodivergência tem incrementado o reconhecimento social e a visibilidade do neurodivergente. Aos poucos, personagens neurodivergentes têm surgido em filmes e séries, como The Big Bang Theory, Criminal Minds, House e Atypical.
Por falar em ativismo neurodivergente, o objetivo é fazer com que a diversidade de modos de ser e suas demandas específicas sejam refletidas nos espaços públicos, ambientes educacionais e profissionais. Este seria, para além de todos os discursos, o maior indicativo da aceitação e da inclusão dos neurodivergentes à sociedade.
Hoje, grandes empresas, como Microsoft e SAP, por exemplo, começam a reconhecer alguns dos pontos fortes mais óbvios das pessoas autistas, como atenção aos detalhes e reconhecimento de padrões, e as recrutam para trabalhos adequados.
Mas, ainda é pouco.

Ativistas querem que pessoas neurodivergentes participem dos processos de tomada de decisão da comunidade médica, nos assuntos que lhes dizem respeito, em vez de serem apenas os alvos de decisões “especializadas”. Eles criticam as terapias capacitistas ainda predominantes, projetadas para fazer com que as pessoas pareçam não-deficientes, em vez de apoiá-las em suas prioridades e demandas.
Para isso, é preciso investir na conscientização e na formação de pesquisadores científicos, profissionais da saúde e formuladores de políticas públicas.
Atualmente, ainda prevalece uma espécie de cisma entre cientistas e profissionais de saúde que se concentram em tratar e controlar, de um lado, e os ativistas neurodivergentes, muitos dos quais experimentaram tratamentos coercitivos, de outro. Os primeiros veem condições como depressão, esquizofrenia e transtorno bipolar como problemas médicos a serem resolvidos; o segundo grupo reivindica essas condições como parte de sua identidade, e busca alívio e apoio para lidar com os eventuais aspectos negativos.
Por trás disso está a ideia de que a neurodivergência não é inerentemente negativa, mas um traço identitário que pode implicar ao sujeito facilidades e dificuldades.
Indo além, podemos dizer que boa parte do sofrimento do neurodivergente vem da forma como a sociedade neurotípica não consegue acomodar suas demandas e necessidades: sensoriais, de movimento, linguagem e interação social. De fato, muitas convenções sociais se baseiam em suposições em torno desses domínios: a expectativa de que todos possam interagir em um pátio barulhento no intervalo entre aulas da escola, ou possam fazer contato visual confortavelmente durante uma conversa, ou possam manter seu corpo completamente parado por muito tempo.
O respeito ao neurodivergente significaria um realinhamento radical dessas convenções, tanto interpessoais quanto físicas / estruturais.

Por exemplo, um hospital infantil nos EUA realizou um projeto, juntamente com a ASAN – Autistic Self Advocacy Network (Rede de autodefesa autística) para tornar os exames de sangue menos traumáticos para crianças autistas. O hospital desenvolveu um conjunto de imagens que mostram o procedimento para crianças autistas e não-falantes de forma calma e de fácil compreensão. Uma vez que enfermeiros e técnicos recebam treinamento sobre o método, as crianças neurotípicas também se poderão se beneficiar desse processo.
Em vez de pessoas com deficiência tentarem se conformar e passar despercebidas entre a população em geral, a sociedade precisa mudar para aceitar, incluir e acomodar as necessidades dessas pessoas.

JÁ FOI BEM PIOR…
Há um século, pessoas neurodivergentes não estariam protestando em favor de políticas de inclusão e adaptação. Isso porque, muitas vezes, não eram sequer diagnosticadas e/ou permaneciam escondidas ou trancadas em hospitais, clínicas e outras instituições.
Nas décadas de 1940 e 1950, pais de crianças com deficiência intelectual e de desenvolvimento começaram a desafiar as recomendações dos médicos. Em vez de abrigar seus filhos em instituições, dedicaram-se a prestar cuidados individualizados para ensinar habilidades básicas de vida: leitura, escrita e outras ferramentas que precisariam para viver. Crianças que anteriormente teriam sofrido com o isolamento, abuso e práticas traumatizantes, como lobotomia e esterilização forçada, se desenvolveram de modo surpreendente. Algumas cresceram e se tornaram estudiosas e ativistas de sua própria condição.
Com um maior número de pais recusando a institucionalização e optando pela educação, surgiram organizações em prol dos direitos das pessoas com deficiência.
As décadas de 1960 e 1970 foram marcadas pelo início do processo de desinstitucionalização e pela exigência de educação especializada para crianças com deficiência.
Aos poucos, em vários lugares do mundo, foi sendo formada a base para um conjunto de legislações que foram garantindo às pessoas com deficiência mais direitos.
À medida que mais pessoas neurodivergentes conquistaram diplomas universitários e ganharam poder para falar por si mesmas, formaram organizações de autodefesa, como a ASAN.
Apesar disso, o ritmo do progresso das oportunidades para estes indivíduos ainda é lento. Muitos ambientes sociais ainda resistem a adaptar seus espaços às necessidades físicas e sensoriais de todas as pessoas. Os postos de trabalho ajustados a pessoas com deficiência são escassos. Além disso, em muitas instituições de saúde ainda vigoram tratamentos capacitistas, desconfortáveis e inúteis.

UM OLHAR PARA A “ABA”
Considere como ilustração a “Análise comportamental aplicada”, mais conhecida como ABA (Applied behavioral analysis), terapia mais antiga, mais conhecida e, provavelmente, mais utilizada hoje para crianças autistas.
Baseados em conceitos da Psicologia comportamental (Behaviorismo), os terapeutas da ABA criam um plano individualizado para cada criança, com o objetivo de recompensar comportamentos desejados e desencorajar comportamentos indesejados. O objetivo de um plano terapêutico desse tipo pode ser aumentar o contato visual, manter as mãos paradas sobre a mesa ou parar de batê-las para se autoestimular (stimming). Há relatos de crianças que fazem uma carga horária intensa de terapia ABA, que chega a dezenas de horas semanais.
Ou seja, uma crítica que pode ser dirigida à ABA é de que se trata apenas de uma tentativa de fazer com que a criança autista “imite” uma criança neurotípica. Ao mudar seu comportamento para obter recompensas, o que ocorre com os afetos da criança autista? Por exemplo, ao tirar dela o stimming, como a terapia espera que a criança autista alivie seu estresse e sua ansiedade? Finalmente, a ABA visa ao bem-estar da criança autista ou apenas daqueles que convivem com ela?
Para mais conteúdo sobre a polêmica da ABA como ferramenta terapêutica com crianças autistas, você pode ler CLICANDO AQUI (conteúdo em inglês).
Muitas das intervenções e tentativas de cura parecem realmente projetadas sem considerar a pessoa autista como foco. Não fornecem a ela uma melhor compreensão de sua condição e das formas como ela poderia aproveitar melhor suas habilidades para atingir objetivos e desejos.

QUEM CONTA A HISTÓRIA DO AUTISMO?
Questões espinhosas se colocam no centro da discussão sobre autismo e neurodivergência: Quem deve ter poder de decisão? Os adultos neurotípicos podem influenciar ou controlar decisões sobre moradia, relacionamentos românticos, dinheiro, emprego etc.? Até que ponto a cultura predominante deve se adaptar para incluir pessoas com deficiência?
Quem representa as necessidades e vozes de pessoas autistas não-falantes e com grandes necessidades de apoio? Este grupo – por vezes chamado de “baixo funcionamento” (termo que muitos consideram ofensivo) – compreende até metade da população autista.
Pais e profissionais alegam que estão em melhor lugar para entender os desafios, uma vez que esses adultos autistas não se comunicam verbalmente, costumam ter múltiplas necessidades médicas e, muitas vezes, apresentam comportamentos autodestrutivos.
Mas os ativistas respondem que os médicos não têm como distinguir entre crianças autistas que permanecerão sem falar e aquelas que apenas têm um atraso na fala, ou entre aquelas cujas deficiências intelectuais prejudicarão sua cognição por toda a vida e aquelas que conseguirão dominar tecnologias assistivas e adaptativas para se comunicar, frequentar a escola e trabalhar. Para os ativistas, os adultos autistas que se enquadram no segundo grupo entendem melhor as necessidades de ambos os grupos, e podem representá-los.

Parece haver um desejo de controlar pessoas com deficiência mental muito maior do que há com pessoas com deficiência física.
Divergências baseadas no funcionamento cerebral parecem ser percebidas como ameaçadoras e perigosas, o que leva os neurotípicos a querer tomar decisões em nome dos neurodivergentes.
Muitas pessoas se assustam se encontram na rua alguém que está falando sozinho ou movendo o corpo de modo não-usual. Crianças autistas são constantemente contidas perto de crianças neurotípicas, mesmo sem terem feito nada, pois seus pais temem que assustem ou machuquem os colegas.
No entanto, estatisticamente, crianças e adultos com deficiência são mais propensos a serem vítimas do que a cometer violência. Isso sugere que a educação dos neurodivergentes pode torná-los “vítimas melhores”, em vez de pessoas que possam impor regras e limites.
Se hoje podemos constatar progresso em relação aos direitos dos neurodivergentes em relação às gerações anteriores é porque houve muita luta e muito trabalho.
Para que cada geração cresça com mais direitos e menos barreiras, será preciso mais trabalho duro. Abastecer as pessoas neurodivergentes com conhecimento de sua condição e de seus direitos, fornecendo ferramentas para que possam reivindicá-los.
02 DE ABRIL: DIA MUNDIAL DE CONSCIENTIZAÇÃO DO AUTISMO
Em 2007, a ONU (Organização das Nações Unidas) definiu o dia 2 de abril como o Dia Mundial de Conscientização do Autismo.
Nessa data, monumentos de todo o planeta se iluminam de azul — no Brasil, o mais famoso é o Cristo Redentor — para lembrar a data e chamar a atenção da mídia e da sociedade para o Transtorno do Espectro do Autismo (TEA).
Em 2021, a comunidade envolvida com a causa do autismo no Brasil se une sob o lema “Respeito para todo o espectro”, usando a hashtag #RESPECTRO nas redes sociais.
Uma fita feita de peças de quebra-cabeça coloridas também é utilizada no trabalho de conscientização. Ela representa a diversidade e complexidade do autismo.

Um comentário em “Autismo é identidade, não doença: por dentro da neurodiversidade”