Procrastinação

Atire a primeira pedra quem nunca deixou para amanhã o que poderia fazer hoje.
Muita gente se acha preguiçoso quando não consegue realizar um trabalho, começar uma dieta ou ler um livro no prazo que havia estabelecido.
Mas a preguiça talvez não seja a culpada pela procrastinação.
No livro que lançou no começo desse ano, a estudiosa Devon Price vai mais longe. Para ela, a preguiça não existe.
Como psicóloga social, Price se interessa basicamente pelos fatores situacionais e contextuais que impulsionam o comportamento humano. De fato, as normas e o contexto sociais de uma pessoa costumam prever ou explicar suas ações com segurança razoável.

Assim, ao analisar de perto o comportamento que chamamos de procrastinação, a psicologia social faz as seguintes perguntas: quais são os fatores situacionais que ocasionam esse atraso?
Que necessidades deste indivíduo não estão sendo atendidas? Quais são as barreiras invisíveis que esta ação está enfrentando?
AS BARREIRAS INVISÍVEIS
Sempre há barreiras envolvidas na procrastinação. Reconhecer e vê-las como legítimas é, muitas vezes, o primeiro passo para quebrar padrões de comportamento “preguiçosos”.

A propósito, ao chamar determinadas condutas de “preguiçosas”, já atribuímos a elas um valor moral pejorativo. Para as ciências em geral, e para as humanas principalmente, o julgamento moral nunca é um bom guia, e deve ser substituído pela curiosidade.
A esse respeito, Price cita o caso de uma amiga, escritora e ativista, a Kimberly Longhofer (que publica sob o nome de Mik Everett*). Kim escreve sobre a aceitação e inclusão de pessoas com deficiência e sem-teto. Sua escrita sobre ambos os assuntos é primorosa e esclarecedora, principalmente porque Kim é uma pessoa com deficiência e teve algumas vezes a experiência de viver sem-teto.
Kim fala, por exemplo, sobre a insanidade de julgar um sem-teto por querer comprar álcool ou cigarros. Quando você vive sem-teto, as noites são frias, o mundo é hostil, e tudo é dolorosamente desconfortável. É difícil descansar tranquilo, é provável que você tenha lesões ou condições crônicas que incomodem persistentemente, e nenhum acesso a cuidados médicos. Você também não tem muito acesso a comida saudável.
Se você está deitado no frio, beber um pouco de álcool pode ser uma maneira de se aquecer e pegar no sono. Se você tem fome, alguns cigarros podem ajudá-lo a aliviar as dores.
Quando você não entende o contexto de uma pessoa – como é ser ela todos os dias, seus aborrecimentos e desafios – é fácil impor expectativas sobre o comportamento de alguém.
QUAL A SOLUÇÃO, ENTÃO?
Nas últimas décadas, porém, a pesquisa psicológica foi capaz de explicar a procrastinação como um problema funcional, não uma consequência de uma suposta falha moral. Quando uma pessoa não consegue iniciar um projeto com que se importa, isso tipicamente se deve ao: a) medo de que seu desempenho não seja “bom o suficiente”, ou b) desconhecimento sobre como e por onde começar a tarefa. Na verdade, a procrastinação é mais provável quando a tarefa é significativa para o indivíduo e, portanto, ele se preocupa em fazê-la bem.

Não tem a ver com desejo, motivação ou integridade moral. Procrastinadores podem trabalhar por horas, sentados na frente de um relatório, absolutamente focados, e torturar-se sem conseguir sequer começar. Na verdade, seu intenso desejo de concluir o tal relatório pode piorar seu estresse e dificultar a ação.
A solução começa por investigar e descobrir o que está paralisando o procrastinador.
Se a ansiedade é a principal barreira, mais tempo dedicado à tarefa não vai necessariamente ajudar. O procrastinador precisa se afastar do computador/documento/situação e se envolver em alguma atividade relaxante.
Muitas vezes, porém, a barreira está no que chamamos de “funcionamento executivo” – a capacidade de dividir uma grande responsabilidade em uma série de tarefas menores, específicas e ordenadas. Por exemplo, no caso do relatório de trabalho: a) organizar um cronograma para confecção e entrega; b) levantar dados, c) esboçar no papel, d) elaborar gráficos e tabelas, e d) redigir o documento final, de acordo com o cronograma pré-determinado.

Para algumas pessoas, realizar tarefas dessa forma é simples, porque é consistente com a forma como seu cérebro funciona. A maioria, porém, não tem essa facilidade. Eles precisam de uma estrutura externa para mantê-los produtivos. Por exemplo, precisam de conselhos sobre como dividir um objetivo em metas (menores, mais facilmente realizáveis e que permitam o acompanhamento e a avaliação do processo) ou como elaborar um cronograma. Podem precisar de ferramentas, como listas de tarefas, calendários ou aplicativos.
Nada disso torna uma pessoa preguiçosa. Apenas ressalta que pessoas têm diferentes necessidades para se manter criativas e produtivas.
AINDA CULPAMOS AS VÍTIMAS
As pessoas adoram culpar os procrastinadores por seu comportamento.
“Você deveria estar fazendo algo, e não está – isso é uma falha!”.
“Você é fraco, desmotivado e preguiçoso”.
Muitas pessoas são subestimadas em sua capacidade porque as barreiras que dificultam seu progresso não são vistas como legítimas.
Isso se torna mais visível quando se trata de reconhecer as limitações impostas por certas condições psicológicas.
Pode ser que um jovem com TOC (Transtorno obsessivo-compulsivo) chegue sistematicamente atrasado a compromissos porque seus rituais tomam boa parte do seu tempo. Uma pessoa deprimida pode faltar ao trabalho porque naquele dia não conseguiu sair da cama.
Há poucos espaços onde essas pessoas podem compartilhar o que as incomoda sem se sentirem julgadas e oprimidas por mais exigências. São pessoas que, com alguns ajustes na situação, podem florescer incrivelmente.

Infelizmente, não somos ensinados a refletir sobre essas barreiras invisíveis – as dos outros e as nossas próprias – e acabamos perpetuando desigualdade e estigmas.
A maioria dos professores são pessoas que tiveram sucesso acadêmico, e por isso podem ter dificuldade em se colocar no lugar de alguém com problemas de atenção e foco, por exemplo. Ou, no mundo corporativo, um grande executivo, que entrega à empresa uma grande performance com facilidade, pode ter dificuldade de aceitar n mesmo ambiente alguém com dificuldade no funcionamento executivo, depressão, ansiedade etc.
Em todos esses casos, termos como “preguiça” são usados para dar a entender que se trata de uma escolha ativa do indivíduo, e, portanto, algo pelo que ele pode ser culpado e punido. São atitudes elitistas e acríticas, tipicamente suportadas pela ignorância situacional.
NINGUÉM GOSTA DE FALHAR
Se alguém procrastina sistematicamente, provavelmente não o faz porque quer.
A intenção é fazer direito, e ele provavelmente está tentando.
Se tivermos uma abordagem mais curiosa e empática, e menos julgadora e punitiva, para os indivíduos que inicialmente seriam tachados como “preguiçosos” ou irresponsáveis, criaremos relações mais humanas.
Se uma pessoa não consegue sair de casa para trabalhar, algo pode estar deixando-a indisposta. Se um aluno não está entregando seus trabalhos, pode haver algum aspecto da tarefa que ele não consegue cumprir. Se um funcionário perde prazos constantemente, algo pode estar dificultando sua organização. Mesmo quando alguém está ativamente escolhendo se sabotar, há razão para isso – algum medo, uma falta de autoestima sendo expressa…
As pessoas não optam por falhar ou decepcionar. Ninguém quer se sentir incapaz. Se você olhar para a ação (ou inação) de uma pessoa e ver apenas preguiça, está perdendo detalhes-chave.
Há sempre uma explicação. Há sempre barreiras. Basta olhar mais de perto.
* Kim Longhofer / Mik Everett, Self-Published Kindling: Memoirs of a Homeless Bookstore Owner.
RECADO PARA VOCÊ
A pandemia tem afetado o bem-estar de muita gente, e não só pela procrastinação.
Ansiedade, estresse, medo e pessimismo estão entre os incômodos mais comuns.
Estudos preveem que esses sintomas podem trazer consequências negativas até muito tempo depois que a pandemia terminar.
Portanto, se você não estiver se sentindo bem, procure apoio psicológico.
Se preferir, fale comigo. Acesse aqui o Whatsapp
VEJA TAMBÉM