Palavras-chave: trauma bonding; vínculo de trauma; relacionamentos; relacionamento tóxico; trauma infantil
Por Psicólogo Rodrigo Giannangelo | Publicado em 25 de julho de 2022
A cantora estadunidense Poutyface tem uma música chamada Trauma Bond. Nela, uma garota começa descrevendo seu atual parceiro como alguém cuja vida tem sido bastante satisfatória:
Sua infância não podia ter sido melhor
Pai e mãe ainda estão juntos
Um emprego estável, com benefícios
Eles têm atividades e tal
Como jogos de baseball e jantares em família
O parceiro parece uma pessoa amorosa, que a trata bem. No entanto, a reação dela não é receptiva. Ao contrário, esta relação a deixa entediada:
Eu estou com um sorriso amarelo, olhando para o chão
Ele me deixa enjoada, me deixa flores na porta
Eu sei que ele é bom pra mim, talvez por isso eu esteja tão entediada
O problema não é você, sou eu
O ouvinte pode ficar confuso pela aparente incongruência. Se ela não tem nada do que reclamar, então qual o problema? A resposta dela é clara:
Eu preciso de um vínculo de trauma (trauma bond)
Essa é minha fraqueza, me excita
Eu quero alguém com problemas de confiança
Que me faz chorar, e então me oferece um lenço
Se eu não perco o sono, não quero mais
OUÇA ESSA MÚSICA:
A ideia expressa no conceito de trauma bonding é a de que pessoas que tiveram uma infância problemática do ponto de vista da relação com seus primeiros cuidadores desenvolvem padrões disfuncionais de relacionamento na vida adulta. Isso ocorre porque seus modelos aprendidos de apego são baseados em situações dolorosas e traumáticas.

Breve história sobre o trauma bonding
Teorias sobre o apego
Dutton e Painter (1981) foram os primeiros a usar o termo trauma bonding (“vínculo ligado ao trauma”, em tradução livre), para designar uma relação baseada em um claro desequilíbrio de poder entre os parceiros e reforço intermitente.
Antes deles, a principal teoria sobre o apego humano era a de John Bowlby (1907-1990).
Bowlby construiu sua compreensão sobre o apego baseado nos caminhos necessários ao desenvolvimento de laços saudáveis e seguros, argumentando em favor da consistência e do reforço positivo. Por outro lado, Dutton e Painter se esforçam em descrever como ocorre a criação de laços problemáticos e inseguros.
Tudo parece bom no início
Quando estamos diante de uma relação nova e de um parceiro (ao menos parcialmente) idealizado, nossas aproximações e nossos encontros são reforçados positivamente. Do ponto vista cerebral, isso significa que por um coquetel de substâncias responsáveis por sensações de prazer é liberado em nosso organismo – dopamina, serotonina e ocitocina. Em essência, é nesse momento que um parceiro nos fisga.
Como começa a dar errado
Porém, quando as coisas começam a dar errado, um hormônio chamado cortisol entra em ação, e os reforços negativos também. Se isso acontece, os parceiros podem, em vez de desistirem da relação, decidirem se esforçar para fazer dar certo e não perder o que já “investiram” no relacionamento.
É nesse momento que relacionamentos tóxicos podem se estabelecer e ganhar consistência. Por exemplo, imagine que um dos parceiros é emocionalmente distante e indiferente – não demonstra o que sente, nem o que pensa sobre a relação. Diante disso, o outro parceiro passa a realizar demonstrações de afeto cada vez mais intensas, tentando provocar alguma resposta.
No entanto, nenhuma demonstração consegue transformar aquela pessoa indiferente em um parceiro sensível e amoroso. De fato, o único resultado dessa atitude é uma intensificação do laço de apego. Ou seja, mesmo que a relação não vá bem, vai ficando cada vez mais difícil sair…
O Trauma bonding se baseia em necessidades não satisfeitas
Relacionamentos insalubres – como aqueles baseados em trauma bonding – se constroem a partir de necessidades infantis não satisfeitas na história de vida dos parceiros. As fantasias que nascem no início de um relacionamento (a intensidade dos afetos, a idealização do parceiro etc.) parecem entregar tudo que você sempre esperou da relação com seus primeiros cuidadores.
Por exemplo, você cresceu em um lar que provocava insegurança? Você começa uma relação nova e… Bum! Eis que você está sendo protegido, seguro nos braços de seu novo parceiro.
Nunca sentiu que podia confiar em alguém? Bum! Eis que você sente que pode confiar naquela nova pessoa.
Essas situações vêm ao encontro de nossas necessidades internas e se encaixam “como uma luva”. Assim, podem fortalecer vínculos tóxicos.
Isso não quer dizer que todas as pessoas que tiveram necessidades afetivas não atendidas na infância estão fadadas a relações insalubres. Em algum grau, todos temos necessidades não atendidas.
Ocorre que, em relações saudáveis, temos autonomia sobre nossas frustrações infantis. Ou seja, estamos cientes de sua existência e não esperamos que um relacionamento amoroso venha suprir essas lacunas.
Ao contrário, desejamos parceiros que nos complementem, e não parceiros que nos completem.
Sinais de alerta para o trauma bonding
Vale a pena introduzir alguns sinais de alerta sutis de que uma relação tem um trauma bonding.
A ideia aqui não é criar generalizações. Sua história de relacionamentos anteriores, e, principalmente, sua história de vida e experiências pessoais são as principais fontes a considerar antes de chegar a qualquer conclusão.
De fato, é possível que ambos os parceiros tenham vivido momentos dolorosos em suas infâncias. Quando o casal atinge o ponto onde se sente confortável para isso, os parceiros podem falar abertamente sobre eventos traumáticos que provavelmente impactam a forma como veem o mundo hoje.
Assim, compreendendo o caminho de vida percorrido por seu parceiro, é possível desenvolver empatia por ele em situações potencialmente conflituosas.
No entanto, quando a relação tem trauma bonding, essa comunicação de experiências dolorosas pode ser usada contra você. Por isso, é importante reconhecer os sinais.
– Desejar problemas: Relações tóxicas são montanhas-russas emocionais. Por isso, os parceiros tendem a se entediar quando as coisas ficam calmas. Na tranquilidade, tentam agitar as coisas com discussões inférteis, infidelidade ou sabotagem.
– Comportamento autodestrutivo: Atitudes autodestrutivas podem ser tentativas implícitas de repetir a situação traumática original. Por exemplo, culpabilizar-se por todos os problemas da relação, ou buscar sempre parceiros que são lembretes inconscientes do trauma não resolvido.
– Mudanças de apetite e peso: A dinâmica de neurotransmissores e hormônios constantemente mobilizados no trauma bonding pode causar alterações no peso e no apetite. Por exemplo, níveis elevados de serotonina e dopamina podem diminuir o apetite nos momentos de lua de mel, enquanto níveis altos de cortisol podem aumentar o apetite durante os momentos de atrito.
– A felicidade aparente: Na maioria das vezes, o trauma bonding é sinônimo de sucessões de altos e baixos emocionais. Porém, há um tipo ainda mais perigoso, mas menos conhecido.
Trata-se de um vínculo com constantes altos ao longo da relação, sem baixos óbvios.
Um parceiro desavisado pode acreditar que encontrou sua “alma gêmea” — tudo funciona bem, raramente há desentendimentos, ambos parecem em sintonia com valores, objetivos de vida, humor, músicas favoritas etc.
Essa situação pode perdurar por meses ou até anos. Pode ser que o parceiro desavisado até perceba o surgimento de algumas tensões, mas irá creditá-las, por exemplo, ao estresse no trabalho pelo qual a outra pessoa está passando. No entanto, o que está ocorrendo naquela pessoa é uma desvalorização invisível do relacionamento – e do parceiro desavisado.
Assim, sem aviso, um dia essa pessoa decide sair da relação.
Nesse tipo de trauma bonding, não há idas e vindas. A relação é vista como saudável, feliz e satisfatória para o parceiro desavisado. Contudo, para o outro parceiro, “relacionar-se” é como um vício que, em algum momento, o impele a pensar que o melhor para si está… no próximo relacionamento.
Um pensamento final…
O trauma bonding pode se apresentar em todos os relacionamentos de uma pessoa, até que as fontes do trauma sejam curadas e resolvidas.
Por esse motivo, o acompanhamento em psicoterapia é uma das ferramentas mais efetivas para melhorar a vida amorosa de pessoas que já passaram por relacionamentos tóxicos.
Referências
Bowlby, J., 1982. Attachment. New York: Basic Books.
Bowlby, J. (1977). The making and breaking of affectional bonds. British Journal of Psychiatry, 130, 201–210.
Dutton, G.G., & Painter, S.L. (1997). Emotional attachments in abusive relationships: A test of traumatic bonding theory. Violence & Victims, 8(2), 105- 121.
Dutton, D. G., & Painter, S. L. (1981). Traumatic bonding: The development of emotional attachments in battered women and other relationships of intermittent abuse. Victimology: An International Journal, 7(4), 139–155.
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