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Psicopatologia: por que uma mudança de termos é importante?

Palavras-chave: psicopatologia; linguagem

Por Psicólogo Rodrigo Giannangelo | Publicado em 20 de outubro de 2023


A mais recente edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de doenças mentais (DSM-5) eliminou o termo “hipocondria” e passou a referir-se a “Transtorno de ansiedade de doença”.

Nas últimas décadas, esse tipo de mudança tem sido comum na psicopatologia. À primeira vista, pode parecer uma simples formalidade, mas tem importantes implicações.

Ao rotular os pacientes, a linguagem clínica utilizada para fins diagnósticos corre o risco de patologizar desnecessariamente o sofrimento. Pense na diferença entre “Eu tenho depressão” ou “Eu sou deprimido”, por um lado, e “Eu luto contra a depressão”, de outro. O primeiro par de afirmações sugere que a depressão é uma característica da pessoa (quase como “eu tenho olhos azuis” ou “eu sou magro”). Já a terceira delas sugere que a pessoa é ativa e autônoma diante do seu problema.

Tais sutilezas linguísticas podem afetar positiva ou negativamente o prognóstico e o andamento do tratamento.

Psicopatologia tradicional – outro exemplo

Imagine que um paciente em tratamento contra a depressão decida ler o que o DSM-V diz sobre seu problema. Eis o que ele vai encontrar:

– O que chamamos de depressão inclui “transtorno disruptivo da desregulação do humor, transtorno depressivo maior (incluindo episódio depressivo maior), transtorno depressivo persistente (distimia), transtorno disfórico pré-menstrual, transtorno depressivo induzido por substância/medicamento, transtorno depressivo devido a outra condição médica, outro transtorno depressivo especificado e transtorno depressivo não especificado” (DSM-5, p. 155).

– Seus principais sintomas caracterizam-se por “episódios distintos de pelo menos duas semanas de duração […] envolvendo alterações nítidas no afeto, na cognição e em funções neurovegetativas, e remissões inter episódicas.” (DSM-5, p.155).

Creio que não seria uma experiência agradável, pra dizer o mínimo. A pessoa que se sente deprimida já costuma ter dificuldade de reunir forças e encontrar motivos para fazer coisas importantes de sua vida, e isso se aplica ao próprio tratamento contra a depressão.

Nesse sentido, a descrição patologizante do “Manual” possivelmente só aumentaria a distância que essa pessoa enxerga entre ela e a cura. Ela veria a si mesma como uma “pessoa doente”, paralisada em seu sofrimento – uma página de um manual, um verbete de uma enciclopédia.

Por uma “psicopatologia” humanista

Quando recebo um paciente com queixa de sintomas depressivos, gosto de citar um texto de Rubem Alves chamado “A arte de produzir fome”. Esse texto breve, publicado há mais de 20 anos pelo jornal ‘A Folha de São Paulo’, começa assim:

“Adélia Prado me ensina pedagogia. Diz ela: ‘Não quero faca nem queijo; quero é fome’. O comer não começa com o queijo. O comer começa na fome de comer queijo.

Se não tenho fome é inútil ter queijo. Mas se tenho fome de queijo e não tenho queijo, eu dou um jeito de arranjar um queijo…”.

Na depressão, a pessoa pode ter “a faca e o queijo na mão” – um emprego legal, uma família amorosa, um(a) parceiro(a) amoroso(a). Mas lhe falta “fome” – ânimo e desejo de desfrutar dessa condição de vida. Por que isso acontece? Porque coisas que faziam sentido deixaram de fazer. O sentido é o que faz as coisas valerem a pena. Sem sentido, não tem pra que, nem por que.

E pronto. A partir dali, fica dito que aquela pessoa precisa reencontrar sentido em sua vida – reencontrar a sua “fome”.

Ela não precisa ver seu estado depressivo como uma doença que lhe acometeu, pode vê-lo como uma crise de sentido.

Consequências positivas para o tratamento

  • A psicopatologia tradicional desumaniza o paciente, estabelece que algumas de suas características pessoais estão “erradas”. Isso pode diminuir consideravelmente seu engajamento no tratamento, bem como sua esperança nos resultados;
  • O paciente percebe que tem poder sobre seu problema, e não o contrário;
  • O paciente reconhece que está passando por um desafio humano, que pode acontecer a qualquer um, e deixa de se ver como pertencente a uma classe distinta (dos neuróticos, por exemplo);
  • Perceber-se como protagonista do tratamento aumenta a chance de que o paciente comece a desenvolver ferramentas próprias de enfrentamento para o problema;
  • O paciente pode ter mais autocompaixão e autocompreensão, amenizando o teor das críticas que faz a si mesmo;
  • O paciente sente que o problema é solucionável, e não estático.

Quando estamos atentos à linguagem que usamos no trabalho em saúde mental, garantimos que as pessoas se sintam ouvidas, compreendidas e seguras. O DSM levou décadas para começar a suavizar algumas de suas duras linguagens e terminologias de diagnóstico clínico, mas a mudança é benéfica para todos.

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